A Estratégia Saúde da Família (ESF), criada em 1994, é hoje o principal eixo da atenção básica no Brasil. De acordo com dados do Ministério da Saúde, o país conta com mais de 61 mil equipes de Saúde da Família, distribuídas em cerca de 47 mil Unidades Básicas de Saúde (UBS), cobrindo 79,6% da população brasileira.
Atualmente, o modelo é considerado a principal porta de entrada do Sistema Único de Saúde (SUS) e o mais eficaz para reduzir custos e melhorar a qualidade da atenção. Ainda, segundo o Ministério da Saúde, municípios com ampla cobertura da ESF registram até 40% menos internações por causas evitáveis e redução de até 30% na mortalidade infantil, evidenciando o impacto direto da atenção primária sobre os resultados populacionais.
Para o cardiologista e gestor Hans Dohmann, ex-secretário municipal de Saúde do Rio de Janeiro, a eficiência do sistema público depende da consolidação dessa rede de base, formada por médicos de família e multiprofissionais, capazes de acompanhar o paciente de forma contínua e preventiva. “A atenção primária é o núcleo do sistema. É ali que se evita a fragmentação do cuidado e se reduz o custo com internações e exames desnecessários”, explica.
O papel estratégico dos médicos de família
Apesar da ESF cobrir grande parte da população brasileira, essa cobertura, no entanto, é desigual entre as regiões e municípios. A presença do médico de família é o principal fator de diferenciação: além de diagnosticar e tratar doenças, ele atua na prevenção e acompanhamento longitudinal, o que reduz a sobrecarga dos hospitais e pronto-atendimentos.
Estudos da Fiocruz e da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) indicam que cada R$ 1 investido em atenção primária economiza-se até R$ 3 em atendimentos hospitalares e exames de alta complexidade. “A eficiência na saúde pública não é um conceito teórico; é um resultado de organização, gestão e vínculo. Onde há médico de família, há menos desperdício e melhores desfechos clínicos”, observa.
Da teoria à prática: a experiência no Rio de Janeiro

Entre 2009 e 2014, Hans Dohmann esteve à frente da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, período marcado por uma das maiores transformações da atenção primária no país. À época, a cidade estava entre as últimas colocadas em cobertura de Saúde da Família dentre as capitais brasileiras, com menos de 10% da população assistida.
Dohmann liderou a criação e implementação das Clínicas da Família, unidades integradas e modernas que substituíram o modelo tradicional dos postos de saúde. “O diagnóstico era de caos”, relembra. “Faltavam médicos, infraestrutura e até insumos básicos. Era preciso reconstruir o sistema do zero.”
Com uma equipe técnica liderada por Daniel Soranz, a secretaria redesenhou o modelo de atenção primária, alinhado ao conceito do Triple Aim, proposto pelo Institute for Healthcare Improvement (IHI), que busca melhor experiência do paciente, melhores resultados e menor custo per capita.
Gestão baseada em resultados e eficiência orçamentária
Para viabilizar o projeto, a secretaria promoveu um reordenamento orçamentário profundo. O orçamento herdado, de cerca de R$ 2 bilhões anuais, apresentava déficit de R$ 250 milhões. A reestruturação administrativa e a entrada de recursos do Banco Mundial permitiram ampliar o investimento em saúde para mais de R$ 4 bilhões nos anos seguintes.
As novas unidades foram operadas em parceria com Organizações Sociais (OS), que possibilitaram maior agilidade na contratação de profissionais e na gestão de insumos e equipamentos. Hans Dohmann destaca que o uso de prontuário eletrônico e indicadores de desempenho clínico foi essencial para dar transparência e eficiência à operação.
Em quatro anos, foram inauguradas mais de 100 novas unidades, ampliando a cobertura da Estratégia Saúde da Família de 10% para mais de 50% da população carioca. Dados oficiais da prefeitura apontam que, no mesmo período, houve queda de 18% na mortalidade infantil e redução expressiva nas internações originadas de causas comuns à atenção primária, como diabetes e hipertensão.
Modelo de referência nacional
O modelo das Clínicas da Família foi reconhecido como referência pelo Ministério da Saúde e replicado em outros municípios brasileiros. Além de fortalecer o vínculo entre equipes e comunidades, o projeto reverteu um cenário de baixa resolutividade e filas de madrugada nos antigos postos.
“O cidadão passou a ter uma equipe de referência e acompanhamento contínuo. Isso muda tudo, da percepção de cuidado ao controle de doenças crônicas”, afirma. A adoção do monitoramento público de indicadores, expostos mensalmente nas unidades, trouxe um novo padrão de transparência e participação social.
Estudos da Fiocruz publicados após a implementação apontam que, entre 2009 e 2016, o modelo contribuiu para reduzir em 45% as internações por causas evitáveis e melhorar a expectativa de vida nas áreas atendidas.
A evolução do conceito com a saúde digital
Mais de uma década após o início da transformação carioca, Hans acredita que o próximo passo está na integração entre a atenção primária e as tecnologias digitais. Segundo ele, o modelo das Clínicas da Família já nasceu com a lógica do acompanhamento contínuo, mas a telecoordenação e a inteligência artificial ampliam as possibilidades de personalização e gestão populacional.
“Hoje, conseguimos identificar precocemente grupos de risco, monitorar doenças crônicas e otimizar recursos com base em dados. É uma extensão natural daquilo que começamos lá atrás, agora com novas ferramentas”, avalia.
Desafios e lições para o futuro
A experiência do Rio de Janeiro demonstra que eficiência e humanização não são objetivos opostos, mas complementares. Dohmann ressalta que o grande desafio continua sendo a formação e valorização dos médicos de família, profissionais centrais para sustentar o modelo.
“Não há sistema sustentável sem atenção primária forte. É preciso investir na formação, criar incentivos de carreira e garantir autonomia para as equipes. O médico de família é quem conhece a história de vida, o território e as necessidades reais das pessoas”, afirma.
Para ele, o Brasil já comprovou, com evidências concretas, que investir na base é a forma mais inteligente de garantir sustentabilidade financeira e melhores desfechos clínicos. “A atenção primária não é custo, é economia. É onde a saúde realmente começa”, conclui.
Hans Dohmann
Hans Dohmann é médico cardiologista, mestre pela UERJ e doutor pela UFRJ. Atuou como pesquisador, gestor público e executivo na saúde privada. Foi secretário municipal de Saúde do Rio de Janeiro entre 2009 e 2014, liderando a maior expansão da atenção primária já realizada no país.














